Dom Frei Luiz Cappio: “Concluída a missão, voltei para a minha família: os franciscanos”
— Segundo ele, sua experiência como Dom Flávio, na Diocese da Barra (BA) está guardado no coração —
Depois de acompanhar a Primeira Profissão dos Noviços no dia 10 de janeiro, o bispo franciscano emérito, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, dormiu no Noviciado e, logo cedo, com a ajuda do mestre Frei Samuel Ferreira de Lima, seguiu para o Eremitério Santo Egídio, na região montanhosa de Rodeio (SC), distante 12 km da cidade.
Com a autorização do Governo Provincial, esta casa de oração se tornou o novo lar de Frei Luiz, como agora quer ser chamado. Segundo ele, sua experiência como Dom Flávio, na Diocese da Barra (BA) está guardado no coração e agora retoma a vida na Província da Imaculada Conceição, onde fez a profissão solene e foi ordenado presbítero.
— “Concluída a minha missão, eu voltei para a minha família que são os franciscanos. É por isso que estou aqui. Agora, trago comigo os meus 50 anos de vida no meio daquele povo, com muito amor, com muito carinho, com muita saudade. É por eles de modo especial que eu rezo aqui no Eremitério” — disse.
Para ser mais claro, Frei Luiz diz que durante 50 anos, fazendo alusão ao Evangelho, “eu fui Marta e agora o tempo de vida que o Senhor me conceder quero ser Maria, estar aos pés do meu Senhor para ouvir o que Ele tem a me dizer para a minha vida definitiva”. Frei Luiz deixa a vida missionária e prioriza a vida contemplativa no silêncio do Eremitério.
Sua vida ficou marcada pela luta que empreendeu para lutar pelos mais necessitados do sertão Nordestino. Com o tempo viu que a vida dos pobres desta região semiárida dependia de um Rio, o que levava o nome do Patrono da Ecologia: São Francisco de Assis. Conhecedor do sertão nas suas entranhas, empreendeu uma peregrinação de um ano para conscientizar os ribeirinhos da importância de não deixar o Velho Chico morrer.
Quando veio a transposição do Rio São Francisco, Frei Luiz conta que chegou a acreditar na propaganda de mais água para o povo pobre. Mas a propaganda era enganosa e para salvar o Rio, num ato extremo, fez greve de fome duas vezes.
Nesta entrevista, dada no Eremitério no dia 11 de janeiro, Frei Luiz faz um resumo de sua vida missionária como Pastor da Igreja em defesa da natureza e do Velho Chico, da paixão pelo Papa Francisco e da vida franciscana. Dom Cappio conquistou diversos prêmios, como o Prêmio da Paz, em 2008; o Troféu João Canuto, em 2009; e o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, em 2009.
Acompanhe a entrevista
Site Franciscanos – Frei Luiz, gostaria de começar perguntando como era sua vida antes de ingressar no Seminário? Fale um pouco de sua família.
Frei Luiz – Meus pais foram imigrantes italianos. Papai chegou ao Brasil em 1933 para trabalhar numa fábrica de tecidos em Guaratinguetá e mamãe chegou em 1934. Minha irmã mais velha já era nascida e hoje conta com 92 anos de idade. Está bem, graças a Deus. E meu pai trabalhou a vida inteira nesta fábrica de tecidos Guaratinguetá, que é uma fábrica grande de cobertores. Depois, no Brasil, nasceu meu irmão João Franco, já falecido, minha irmã Rosa Maria, que vive em São Paulo, e eu, que sou o último dos filhos, o caçula. Eu nasci em 4 de outubro de 1946. Então, venho de uma família de trabalhadores urbanos e uma família muito religiosa. Meus pais eram muito religiosos e eu adquiri na família o espírito religioso. Eu posso dizer que a minha vida cristã e minha vocação nasceram no seio familiar.
Site Franciscanos – Como se deu o seu discernimento vocacional e como São Francisco de Assis entrou em sua vida?
Frei Luiz – Por coincidência ou providência, eu nasci no dia de São Francisco de Assis, às 6 horas da tarde. Lá em Guaratinguetá nós tínhamos a presença dos franciscanos e eu sempre tive um respeito e uma atenção muito grande por eles, no Convento das Graças e no Seminário Frei Galvão. Foi por causa deles que conheci São Francisco. E três coisas me aproximaram do espírito franciscano. Em primeiro lugar, quando eu descobri que São Francisco era apaixonado pelo Senhor Jesus. Eu também me tornei um apaixonado pelo Senhor Jesus. Depois, conhecendo melhor São Francisco, vi que ele foi apaixonado pelos pobres e eu também sempre fui apaixonado pelos pobres. E a terceira grande paixão de São Francisco foi a natureza, a vida. Tanto é que ele é Patrono da Ecologia. Eu também sempre fui apaixonado pela vida, pela natureza. Então, essas três paixões – Jesus, os pobres e a natureza – foram os elementos que me atraíram para que eu também seguisse os passos de São Francisco, porque eu senti que a minha vocação se aproximava muito da vocação e da maneira de ser de São Francisco, da sua maneira de conhecer o mundo.
Site Franciscanos – E quando o sr. ingressou no Seminário?
Frei Luiz – Eu ingressei no Seminário no dia 9 de fevereiro de 1965. Foi o primeiro ano do SEVOA. Naquele ano foi criado o Seminário de Vocações para Adultos e eu fiz parte da primeira turma do SEVOA no Seminário Frei Galvão, em Guaratinguetá.
Site Franciscanos – Em quase cinco décadas na Diocese da Barra, como foi deixar o seu rebanho agora como Bispo emérito?
Frei Luiz – Você pode imaginar e meus queridos confrades podem imaginar também que 50 anos não são 50 dias. É uma vida. Toda a minha vida de missionário franciscano e depois Pastor da Igreja foi naquela região, o semiárido brasileiro, o sertão da Bahia. Lá, eu finquei meus alicerces e lá vivi com aquele povo de uma maneira muito intensa. Eu vivia com aquele povo, eu morava em sua casa, comia de sua comida, participava das suas alegrias, das suas tristezas, celebrava nas suas capelas. Enfim, minha vida foi assim uma vida em comunhão muito intensa com aquela população, seja como missionário franciscano, seja como Pastor da Igreja. Então, depois de 50 anos, os laços se aprofundam, os vínculos se tornam muito fortes e eu digo que a saudade está aqui presente no meu coração. Mas eu entendo que foi uma fase da minha vida. Sempre me entendi como franciscano e sempre tive esse sonho que, uma vez terminada a minha missão, eu voltaria para junto da minha família. E foi o que eu fiz. Concluída a minha missão, eu voltei para a minha família que são os franciscanos. É por isso que estou aqui. Agora, trago comigo os meus 50 anos de vida no meio daquele povo, com muito amor, com muito carinho, com muita saudade. É por eles de modo especial que eu rezo aqui no Eremitério.
Site Franciscanos – Como estão sendo esses primeiros dias vivendo no Eremitério Santo Egídio e na Fraternidade do Noviciado?
Frei Luiz – Olha, sempre tive esse desejo: Uma vez que me tornasse emérito, voltar para a Província. E conversei com os últimos Provinciais já há alguns anos, que eu me tornando emérito gostaria de voltar para a Província e que se fosse possível gostaria de viver no Eremitério. Então, encontrei um acolhimento muito fraterno por parte do Frei Paulo Roberto (Ministro Provincial), que eu o agradeço muito pelo acolhimento que me deu na volta à Província. Percebi que ele ficou um pouco receoso pelo fato da minha idade, pelo fato daqui não ter ninguém no momento residindo. Eu disse: “Frei Paulo Roberto, o sr. não precisa se preocupar. A minha vida inteira me virei no sertão e vou saber e me adaptar a esta nova realidade”. Então, ele permitiu e me disse assim: “Frei Luiz, eu não tenho condições de transferir ninguém para lá porque viver no Eremitério não é fruto de uma transferência, mas fruto de uma vocação. Vai depender de o frade desejar ou não viver essa vocação de eremita, de contemplativo. Então, vai e acolha aqueles que desejarem fazer essa vida de oração”. E aqui estou e estou muito feliz. Sinto aqui como se estivesse na minha casa, como tivesse nascido e criado em casa. Embora toda a minha vida tenha sido de missão, mas aqui me sinto totalmente em casa. Eu até diria, fazendo uma alusão ao Evangelho, que durante 50 anos eu fui Marta e agora o tempo de vida que o Senhor me conceder quero ser Maria, estar aos pés do meu Senhor para ouvir o que Ele tem a me dizer para a minha vida definitiva. Então, a gente procurou viver de coração o carisma franciscano, vivendo uma vida muito próxima do Senhor Jesus, muito próxima dos pobres, muito próxima da vida, da natureza, especialmente do Rio São Francisco.
Site Franciscanos – O sr. fez sua formação religiosa franciscana num período em que a Igreja vivia grandes mudanças depois do Concílio Vaticano II, especialmente com a Teologia da Libertação. Como foi essa formação?
Frei Luiz – Eu vivi numa época muito rica da Igreja, que é a das mudanças. Então, as mudanças são efervescentes, são cheias de vida. E eu vivi justamente esse momento. Quando estava no Postulantado, ainda era a época de João XXIII, depois Paulo VI, que fez acontecer o Concílio Vaticano II. Então, os grandes méritos de Paulo VI foi fazer acontecer o Concílio Vaticano II que foi intuição de João XXIII. Eu tive a felicidade de ter formadores maravilhosos. Meu primeiro formador que eu tenho uma reverência por ele é Frei Basílio Prim, foi mestre de noviciado. Com ele aprendi os caminhos do ser franciscano. E tenho um respeito, uma estima, uma gratidão e por que não uma reverência a ele, que mais tarde foi nosso Provincial. E depois os professores. Eu fui aluno de Frei Boaventura Kloppenburg, Frei Gamaliel Devigili, Frei Alberto Beckhäuser, os nossos grandes formadores, Neylor Tonin, Almir Guimarães, Arcangelo Buzzi, Gentil Titon, homens que marcaram a nossa Província e ainda hoje pelo seu grande conhecimento. O Frei Fábio Panini, professor de Direito Canônico. Eu tive homens maravilhosos que souberam viver o tempo das mudanças. Eles se adaptaram às mudanças, numa atitude de aceitação do novo. E tive a felicidade de ser aluno de Leonardo Boff, logo que ele chegou da Europa. Ele estava começando como professor, com toda a garra, todo desejo de ser mestre dos alunos de quem ele acompanhou. Então, fiz dois anos de Teologia de Boaventura Kloppenburg e três anos de Teologia do Leonardo, porque além de ser mestres e professores, foram meus grandes amigos, que eu sempre reverenciei. Então, eu digo que os nossos mestres da época tiveram capacidade de se adaptarem às mudanças sem saudosismos e sem imediatismos, mas contemporizando as realidades, uma teologia que está no seu ocaso e uma teologia que está na sua aurora na América Latina e no mundo inteiro. Eu fico feliz porque vivi uma época das mudanças, sem ter perigo das cristalizações. Dizer: Isso aqui que é o certo, isso que é o absurdo! Não, no meu aprendizado eu vivi o tempo em que a teologia estava em mudanças e a gente tem que estar aberto à ação do Espírito. Foi essa teologia que eu estudei.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a Teologia da Libertação e o papel dela naquela época? Hoje, ela tem lugar nesse mundo polarizado?
Frei Luiz – Eu digo o seguinte. A teologia da Igreja é uma grande árvore. Essa árvore tem muitos galhos e cada galho representa uma maneira de ser teológica. Vou dar alguns exemplos. Quando se fala a teologia feminina, que significa isso? A presença da mulher na história da salvação e a importância da mulher no projeto de salvação de Deus. Quando se fala a teologia da criação, então vem toda essa dimensão do meio ambiente que nós estamos aprendendo muito com o Papa Francisco, quando ele assume a Amazônia, quando ele assume a luta pela vida da natureza, a ecologia integral. Quando se fala da teologia da libertação é outro galho da grande teologia. É aquela que mostra o Jesus salvador e que veio para todos, especialmente os oprimidos, dando voz aos pequenos desse mundo. Então, é um galho importantíssimo da grande teologia da Igreja, que é tão necessária, que é o coração do Evangelho, um Jesus que se dá inteiramente aos pobres e dá a sua vida pela libertação dos pobres. Eu fico muito feliz de ser fruto dessa teologia. E se fui para o sertão durante 50 anos, dei a minha vida pelo povo do sertão do Nordeste brasileiro, é porque bebi na fonte da teologia da libertação, que o Evangelho deve ser levado a todos, especialmente para os pequenos deste mundo.
Site Franciscanos – Que razões o levaram a se transferir para o vale do São Francisco quando estava na Pastoral Operária de São Paulo, com D. Paulo Evaristo Arns?
Frei Luiz – Dom Paulo foi nosso grande amigo. Posso dizer que ele foi o meu pai. E ele me tinha como seu filho. Ele dizia assim para mim: “Frei luiz, você é meu filho. Eu ordenei muitos padres, ordenei alguns bispos. Você eu ordenei padre e ordenei bispo, então você é meu filho”. Eu tinha assim essa alegria por ter essa consideração de D. Paulo Evaristo. E toda vez que eu chegava perto dele, ele me dava seu braço para que eu o acompanhasse para onde ele fosse. Então tive esse grande pai, esse grande amigo, que na época que estávamos na Pastoral Operária, na Vila Guilherme (SP), com Frei Luis Sartori, Frei José Alamiro, Frei Antônio Sperandio nós éramos a equipe da Pastoral. E era uma época muito difícil porque estávamos na ditadura militar. Nós éramos muito vigiados. As pastorais sociais eram muito vigiadas. Então, tínhamos muito cuidado. Em nossas reuniões, a maioria era de nordestinos. E nós perguntávamos: “O que vieram fazer em São Paulo nesta situação tão difícil desta cidade?” Respondiam: “Nós viemos para melhorar a nossa vida”. Eu cá, com meus botões, perguntava: “Melhorar a vida assim? Isso aqui é melhora de vida? Então, como é a vida deles lá?” O Espírito franciscano dizia: seu lugar é lá, porque lá estão os pobres, bem pobres. Então, o que me levou para o Nordeste, o sertão da Bahia, é meu amor a São Francisco e meu amor a Jesus dos pobres.
Site Franciscanos – Hoje, como o sr. avalia as duas greves de fome, nos anos de 2005 e 2007, na trajetória de luta contra a transposição do Rio São Francisco?
Frei Luiz – Quando nós tomamos conhecimento da transposição, minha reação foi de muita alegria porque a transposição estava baseada numa propaganda enganosa, mentirosa, dizendo que era para levar água aos pobres. Quando vi essa notícia, disse: Maravilha! Fiquei felicíssimo por levar água aos pobres. E quando estudei e fui conhecer o projeto vi que não era nada disso, que era o contrário. Era tirar a água dos pobres para dar aos ricos, aos grandes projetos agroindustriais. É usar o rio que é vida para o povo. Economicamente é transformar o rio num objeto de mercado. Daí nós tentamos de todas as maneiras estabelecer um diálogo com o Governo Federal. Não houve acolhimento. Eles não quiseram conversar sobre o projeto de transposição. Depois de muita luta, de muito esforço, eu tive a intuição: “quando a razão se extingue, loucura é o caminho”. Foi quando eu decidi, inspirado pelo Espírito Santo, meu Deus, porque se não fosse o Espírito Santo de meu Deus eu não teria forças de aguentar o jejum. O primeiro foi de 2005, que durou 11 dias, e o segundo de 2007, que durou 24 dias. Então, isso foi um grito em defesa da vida, um grito para chamar a atenção do Brasil e do mundo para a importância da vida do rio para o povo e que nós não podíamos transformar o rio num objeto econômico. Foi isso que me levou a esses dois jejuns.
Site Franciscanos – Como é suportar uma greve de fome?
Frei Luiz – Na fé, porque é terrível. Você pode imaginar o que seja o primeiro de onze dias, só bebendo água e o segundo de 24 dias foi muito pesado. A gente via a morte chegando. A gente sentia o corpo enfraquecendo. Eu fazia questão de ter o único alimento: a Eucaristia. E nos primeiros dias ao lado do altar, depois mais afastado, depois sentado, depois de bruço, quase deitado. A gente via o fim chegando. Foi realmente um momento difícil que se não fosse a graça de Deus, não teríamos aguentado.
Site Franciscanos – Para quem também acompanhava seu jejum era um momento tenso.
Frei Luiz – Com certeza, eu recebi muito apoio da Igreja, meus confrades bispos, sempre muito solidários. Minha família estava comigo. E o que deixou mais feliz: todos os padres da minha Diocese estavam comigo. Muita solidariedade.
Site Franciscanos – Atualmente, como os ribeirinhos e a população às margens do São Francisco avaliam a obra de transposição do Rio? Ainda há resistência?
Frei Luiz – O projeto não foi levado a efeito. Alguma coisinha foi feita, muito malfeita, tanto é que se destrói naturalmente. E aquela água que deveria ser levada, infelizmente está se perdendo nos grandes canais que foram construídos. Imagine levar água por um canal de mais de mil km, que qualidade de água vai chegar lá adiante? E também os canais estão se arrebentando porque foram mal construídos. Muito dinheiro foi jogado fora. Então, o povo nem fala mais nisso porque, infelizmente, não teve significado nenhum para o povo do Nordeste.
Site Franciscanos – Como o sr. recebeu a notícia do “The Economist” que, ao comentar a sua greve de fome, disse que o Rio São Francisco havia encontrado o seu Gandhi?
Frei Luiz – O “The Economist” é um grande jornal. Tudo bem, a gente recebeu elogios e críticas, mas eu digo para você que eu estava muito além de elogios e críticas, eu estava muito concentrado na minha missão libertadora. E nem estava aí para as críticas e elogios.
Site Franciscanos – Tão marcante como a greve de fome foi a caminhada que realizou durante um ano ao longo do Rio São Francisco. Que impressões o sr. colheu desta experiência e como o foi recebido pelas comunidades ribeirinhas?
Frei Luiz – Quando fiz a caminhada, era padre. Ela foi um meio que encontramos para dialogar com o povo ‘saofranciscano’ e falar da importância do rio. Então, nós começamos a caminhada no dia 4 de outubro de 1992 e terminamos no dia 4 de outubro de 193, em 365 dias caminhando na beira do rio São Francisco, da sua nascente até a foz. Dormindo nas casas do povo, comendo aquilo que nos ofereciam. E passando por todas as comunidades da beira do rio, no estado de Minas, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Caminhamos 2.700 km e falando sobre a importância do rio para a vida do povo e a necessidade do povo ‘saofranciscano’ de lutar pela vida do seu rio, porque é a água que o povo bebe, é o peixe do rio que come, é a água do rio que molha as terras de onde colhe o que comer. O rio é o pai e a mãe do povo. Então, se nós quisermos lutar pela vida do povo do sertão, é lutar pela vida do Rio São Francisco, porque é ele que garante a vida do povo. Se o Rio estiver sadio, o povo vai estar sadio, se o rio estiver doente, o povo adoece, se o rio morrer, o povo morre. Então nós assumimos esta luta de conscientizar a população e hoje a gente vê em todo o Vale do São Francisco como são conscientes do valor desse rio.
Nós éramos em quatro: eu, como frade franciscano, Adriano Martins, a Irmã Conceição Menezes, uma religiosa franciscana que foi a cronista e colheu 10 volumes em 365 dias, e o Orlando Araújo, que era um lavrador e sindicalista. Conhecia bastante o rio. Entraram outras pessoas durante alguns trechos ou períodos, mas saíram. Os quatro foram até o fim. E como fruto desse trabalho foi editado o livro “O Rio São Francisco – Uma Caminhada entre Vida e Morte”, que foi publicado pela Editora Vozes e que conta resumidamente esta experiência. Tudo gravado e escrito. Nós entrávamos em todas as casas que abriam portas, escolas, igrejas, fossem elas católicas, presbiterianas, espíritas, nas câmaras municipais e nas emissoras de rádio. Enfim, conversávamos com todos sobre a importância e o valor do rio para a vida do povo. Esse foi o objetivo da peregrinação.
Site Franciscanos – Por que a Articulação Popular São Francisco Vivo perdeu força nos últimos anos?
Frei Luiz – Ela já foi mais forte e já prestou mais serviços. Realmente depois que tivemos um tempo, em nível governamental, muito à deriva, isso enfraqueceu todos os movimentos sociais e que agora, devagarinho, alguns estão se ressuscitando. Quem sabe a gente possa, também devagarinho, fazer com que o Rio São Francisco volte a ter a pujança e a vivacidade que já teve no passado.
Site Franciscanos – O sr. dizia: “Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo”. Como o sr. avalia as crises climáticas?
Frei Luiz – Segundo os especialistas, já não tem mais retorno. Nós gostaríamos tanto de manter a fé e a esperança na possibilidade de retorno. É nesse sentido que eu agradeço a Deus pelo nosso Papa Francisco. Ele é um homem do nosso tempo. Ele abraçou essa questão ambiental de coração, porque ele sabe muito bem que a vida do planeta é condição para a vida do povo. Então se nós quisermos a vida do povo, nós temos que lutar pela vida do meio ambiente que é a condição de vida do povo. Agradeço a Deus por termos como líder de nossa Igreja um homem da grandeza de um Papa Francisco, que faz do meio ambiente uma de suas prioridades. Nós estamos vendo catástrofes terríveis, mas não é apenas no meio ambiente, não, mas também provocadas pelo ser humano. Olha a guerra na Palestina, olha a guerra na Ucrânia. Somos nós, homens, que não estamos, infelizmente, dando o devido valor à vida, à natureza, e provocando essas crises terríveis. E a natureza recebe os reflexos dos maus tratos do ser humano. Eu confesso que tenho rezado muito pelas criancinhas porque eu fico me perguntando: Meu Deus, o que será do mundo quando essas criancinhas, tão lindas, inocentes, forem adultas? Que mundo estamos deixando para eles? Nós recebemos um mundo tão maravilhoso de nossos pais, de nossos antepassados, que mundo estamos deixando para os inocentes de hoje, quando eles se tornarem adultos? É uma questão que não podemos fechar os olhos e muito menos o coração.
Site Franciscanos – Antes do Papa Francisco, o sr. gritava pela ecologia integral e alertava pela degradação da natureza e do Planeta. A Laudato Si’ veio confirmar isso?
Frei Luiz – Na minha Visita ad limina ao Papa Bento XVI, eu pedi a ele que escrevesse uma Encíclica sobre a água, porque o João Paulo II escreveu sobre a terra e nos ajudou muito nas nossas lutas fundiárias. Eu pedi ao Papa Bento que se ele escrevesse uma encíclica sobre a água, daria muita autoridade a todos aqueles que lutam em favor da vida no mundo. Ele falou assim: Eu não vou conseguir escrever, mas com certeza o meu sucessor vai escrever. Parecia que ele já estava preconizando. E não deu outra. Francisco chegou e nos presenteou com a Laudato Si’, que é um grito em defesa do meio ambiente.
Site Franciscanos – Como o sr. avalia o Pontificado do Papa Francisco?
Frei Luiz – Meu Deus, eu sempre digo. Nós somos felizes. Os últimos pastores, todos homens santos. Eu agradeço muito a Deus de ter sido discípulo de um João XXIII, de um Paulo VI, de um João Paulo II, Bento XVI e agora do Papa Francisco. Eu agradeço a Deus de ter como luzes faróis que conduzem a nossa Igreja. Homens santos e lúcidos, e que estão altamente preparados para conduzir a humanidade em épocas tão difíceis como esta que estamos vivendo. Que Deus seja louvado pelo Papa Francisco!
Site Franciscanos – No cenário mundial atual, não há outro líder.
Frei Luiz – Ele é o grande líder no mundo, que sabe o que quer, o que está dizendo. E tem condições de mostrar o caminho a seguir.
Site Franciscanos – A Ordem Franciscana está sabendo usar a divulgação do carisma que faz o Papa Francisco, especialmente com a Laudato Si’ e a Fratelli tutti?
Frei Luiz – Eu acredito que nós precisaríamos melhorar. Nós, como franciscanos, tendo uma orientação de Igreja que vem de encontro ao carisma franciscano. Eu sinto que nós, como franciscanos, ainda não percebemos, não tomamos consciência de que esse é um tempo nosso. E que deveríamos aproveitar melhor o carisma da Igreja que hoje é o mesmo carisma de Francisco. Tanto é que o Papa se chama Francisco. E ele adotou a espiritualidade franciscana embora sendo jesuíta. Então, nós, sendo franciscanos, deveríamos ser mais fiéis ao Papa Francisco.
Site Franciscanos – Como o sr. avalia a crise vocacional na Igreja, especialmente nas Ordens religiosas, já que muitas dioceses têm vocações?
Frei Luiz – Como nós da Diocese da Barra. Eu deixei os padres da Diocese todos ordenados, cada qual com o seu padre preparado pela Diocese. No Seminário, todos os seminaristas são da Diocese. Eu acredito que estamos bem.
Eu acredito que a crise vocacional faz parte da crise que estamos vivendo de um modo geral. Agora, o que significa isso? Significa, ligando com a pergunta anterior, que deveríamos viver com mais garra o nosso carisma franciscano. Realmente viver para valer a mensagem de São Francisco, o carisma franciscano, a vocação franciscana, porque eu acredito que quando mais a gente for fiel à nossa herança, mais vamos atrair vocações. Quem sabe a falta de vocações seja um sinal de que nós não estamos sinalizando como deveríamos o carisma franciscano. A questão vocacional nos diz respeito: Será que estou vivendo a minha vocação cristã franciscana de tal maneira que eu seja um instrumento para atrair outros para viver a mesma vida? São Francisco atraiu tantos. Será que nós, como franciscanos, estamos também vivendo de tal maneira que atraímos outros? É uma pergunta e um questionamento para nós.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a revolução tecnológica, especialmente a Inteligência Artificial, que foi tema da mensagem de 1º de Ano do Papa Francisco?
Frei Luiz – É uma espada de dois gumes, como o Papa Francisco diz. Traz muita coisa maravilhosa, mas também traz consigo muito perigo. O que tem que haver é o bom senso do ser humano de saber utilizar com inteligência as conquistas tecnológicas e ao mesmo tempo estar cuidadoso em relação aos perigos que ela traz consigo. Então, isso exige de nós essa atenção, que é um momento de muita riqueza, mas também de muito perigo. Então, cabe a nós um espírito evangélico franciscano em nosso caso para saber usar o que existe de moderno sem nos deixar arrastar pelos perigos que traz consigo.
Site Franciscanos – Que mensagem franciscana o sr. daria para os jovens de hoje?
Frei Luiz – Eu diria assim: Meus queridos jovens, conheçam Francisco, porque conhecendo Francisco vocês vão conhecer Jesus e conhecendo Jesus, a vida de vocês vai ganhar sentido. Agora, por outro lado, meus queridos confrades franciscanos, os nossos jovens só terão oportunidade de conhecer melhor Francisco e conhecer melhor Jesus se nós, franciscanos, formos verdadeiramente discípulos de São Francisco e seguidores do Jesus Libertador. Amém
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— Segundo ele, sua experiência como Dom Flávio, na Diocese da Barra (BA) está guardado no coração —
Depois de acompanhar a Primeira Profissão dos Noviços no dia 10 de janeiro, o bispo franciscano emérito, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, dormiu no Noviciado e, logo cedo, com a ajuda do mestre Frei Samuel Ferreira de Lima, seguiu para o Eremitério Santo Egídio, na região montanhosa de Rodeio (SC), distante 12 km da cidade.
Com a autorização do Governo Provincial, esta casa de oração se tornou o novo lar de Frei Luiz, como agora quer ser chamado. Segundo ele, sua experiência como Dom Flávio, na Diocese da Barra (BA) está guardado no coração e agora retoma a vida na Província da Imaculada Conceição, onde fez a profissão solene e foi ordenado presbítero.
— “Concluída a minha missão, eu voltei para a minha família que são os franciscanos. É por isso que estou aqui. Agora, trago comigo os meus 50 anos de vida no meio daquele povo, com muito amor, com muito carinho, com muita saudade. É por eles de modo especial que eu rezo aqui no Eremitério” — disse.
Para ser mais claro, Frei Luiz diz que durante 50 anos, fazendo alusão ao Evangelho, “eu fui Marta e agora o tempo de vida que o Senhor me conceder quero ser Maria, estar aos pés do meu Senhor para ouvir o que Ele tem a me dizer para a minha vida definitiva”. Frei Luiz deixa a vida missionária e prioriza a vida contemplativa no silêncio do Eremitério.
Sua vida ficou marcada pela luta que empreendeu para lutar pelos mais necessitados do sertão Nordestino. Com o tempo viu que a vida dos pobres desta região semiárida dependia de um Rio, o que levava o nome do Patrono da Ecologia: São Francisco de Assis. Conhecedor do sertão nas suas entranhas, empreendeu uma peregrinação de um ano para conscientizar os ribeirinhos da importância de não deixar o Velho Chico morrer.
Quando veio a transposição do Rio São Francisco, Frei Luiz conta que chegou a acreditar na propaganda de mais água para o povo pobre. Mas a propaganda era enganosa e para salvar o Rio, num ato extremo, fez greve de fome duas vezes.
Nesta entrevista, dada no Eremitério no dia 11 de janeiro, Frei Luiz faz um resumo de sua vida missionária como Pastor da Igreja em defesa da natureza e do Velho Chico, da paixão pelo Papa Francisco e da vida franciscana. Dom Cappio conquistou diversos prêmios, como o Prêmio da Paz, em 2008; o Troféu João Canuto, em 2009; e o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, em 2009.
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Site Franciscanos – Frei Luiz, gostaria de começar perguntando como era sua vida antes de ingressar no Seminário? Fale um pouco de sua família.
Frei Luiz – Meus pais foram imigrantes italianos. Papai chegou ao Brasil em 1933 para trabalhar numa fábrica de tecidos em Guaratinguetá e mamãe chegou em 1934. Minha irmã mais velha já era nascida e hoje conta com 92 anos de idade. Está bem, graças a Deus. E meu pai trabalhou a vida inteira nesta fábrica de tecidos Guaratinguetá, que é uma fábrica grande de cobertores. Depois, no Brasil, nasceu meu irmão João Franco, já falecido, minha irmã Rosa Maria, que vive em São Paulo, e eu, que sou o último dos filhos, o caçula. Eu nasci em 4 de outubro de 1946. Então, venho de uma família de trabalhadores urbanos e uma família muito religiosa. Meus pais eram muito religiosos e eu adquiri na família o espírito religioso. Eu posso dizer que a minha vida cristã e minha vocação nasceram no seio familiar.
Site Franciscanos – Como se deu o seu discernimento vocacional e como São Francisco de Assis entrou em sua vida?
Frei Luiz – Por coincidência ou providência, eu nasci no dia de São Francisco de Assis, às 6 horas da tarde. Lá em Guaratinguetá nós tínhamos a presença dos franciscanos e eu sempre tive um respeito e uma atenção muito grande por eles, no Convento das Graças e no Seminário Frei Galvão. Foi por causa deles que conheci São Francisco. E três coisas me aproximaram do espírito franciscano. Em primeiro lugar, quando eu descobri que São Francisco era apaixonado pelo Senhor Jesus. Eu também me tornei um apaixonado pelo Senhor Jesus. Depois, conhecendo melhor São Francisco, vi que ele foi apaixonado pelos pobres e eu também sempre fui apaixonado pelos pobres. E a terceira grande paixão de São Francisco foi a natureza, a vida. Tanto é que ele é Patrono da Ecologia. Eu também sempre fui apaixonado pela vida, pela natureza. Então, essas três paixões – Jesus, os pobres e a natureza – foram os elementos que me atraíram para que eu também seguisse os passos de São Francisco, porque eu senti que a minha vocação se aproximava muito da vocação e da maneira de ser de São Francisco, da sua maneira de conhecer o mundo.
Site Franciscanos – E quando o sr. ingressou no Seminário?
Frei Luiz – Eu ingressei no Seminário no dia 9 de fevereiro de 1965. Foi o primeiro ano do SEVOA. Naquele ano foi criado o Seminário de Vocações para Adultos e eu fiz parte da primeira turma do SEVOA no Seminário Frei Galvão, em Guaratinguetá.
Site Franciscanos – Em quase cinco décadas na Diocese da Barra, como foi deixar o seu rebanho agora como Bispo emérito?
Frei Luiz – Você pode imaginar e meus queridos confrades podem imaginar também que 50 anos não são 50 dias. É uma vida. Toda a minha vida de missionário franciscano e depois Pastor da Igreja foi naquela região, o semiárido brasileiro, o sertão da Bahia. Lá, eu finquei meus alicerces e lá vivi com aquele povo de uma maneira muito intensa. Eu vivia com aquele povo, eu morava em sua casa, comia de sua comida, participava das suas alegrias, das suas tristezas, celebrava nas suas capelas. Enfim, minha vida foi assim uma vida em comunhão muito intensa com aquela população, seja como missionário franciscano, seja como Pastor da Igreja. Então, depois de 50 anos, os laços se aprofundam, os vínculos se tornam muito fortes e eu digo que a saudade está aqui presente no meu coração. Mas eu entendo que foi uma fase da minha vida. Sempre me entendi como franciscano e sempre tive esse sonho que, uma vez terminada a minha missão, eu voltaria para junto da minha família. E foi o que eu fiz. Concluída a minha missão, eu voltei para a minha família que são os franciscanos. É por isso que estou aqui. Agora, trago comigo os meus 50 anos de vida no meio daquele povo, com muito amor, com muito carinho, com muita saudade. É por eles de modo especial que eu rezo aqui no Eremitério.
Site Franciscanos – Como estão sendo esses primeiros dias vivendo no Eremitério Santo Egídio e na Fraternidade do Noviciado?
Frei Luiz – Olha, sempre tive esse desejo: Uma vez que me tornasse emérito, voltar para a Província. E conversei com os últimos Provinciais já há alguns anos, que eu me tornando emérito gostaria de voltar para a Província e que se fosse possível gostaria de viver no Eremitério. Então, encontrei um acolhimento muito fraterno por parte do Frei Paulo Roberto (Ministro Provincial), que eu o agradeço muito pelo acolhimento que me deu na volta à Província. Percebi que ele ficou um pouco receoso pelo fato da minha idade, pelo fato daqui não ter ninguém no momento residindo. Eu disse: “Frei Paulo Roberto, o sr. não precisa se preocupar. A minha vida inteira me virei no sertão e vou saber e me adaptar a esta nova realidade”. Então, ele permitiu e me disse assim: “Frei Luiz, eu não tenho condições de transferir ninguém para lá porque viver no Eremitério não é fruto de uma transferência, mas fruto de uma vocação. Vai depender de o frade desejar ou não viver essa vocação de eremita, de contemplativo. Então, vai e acolha aqueles que desejarem fazer essa vida de oração”. E aqui estou e estou muito feliz. Sinto aqui como se estivesse na minha casa, como tivesse nascido e criado em casa. Embora toda a minha vida tenha sido de missão, mas aqui me sinto totalmente em casa. Eu até diria, fazendo uma alusão ao Evangelho, que durante 50 anos eu fui Marta e agora o tempo de vida que o Senhor me conceder quero ser Maria, estar aos pés do meu Senhor para ouvir o que Ele tem a me dizer para a minha vida definitiva. Então, a gente procurou viver de coração o carisma franciscano, vivendo uma vida muito próxima do Senhor Jesus, muito próxima dos pobres, muito próxima da vida, da natureza, especialmente do Rio São Francisco.
Site Franciscanos – O sr. fez sua formação religiosa franciscana num período em que a Igreja vivia grandes mudanças depois do Concílio Vaticano II, especialmente com a Teologia da Libertação. Como foi essa formação?
Frei Luiz – Eu vivi numa época muito rica da Igreja, que é a das mudanças. Então, as mudanças são efervescentes, são cheias de vida. E eu vivi justamente esse momento. Quando estava no Postulantado, ainda era a época de João XXIII, depois Paulo VI, que fez acontecer o Concílio Vaticano II. Então, os grandes méritos de Paulo VI foi fazer acontecer o Concílio Vaticano II que foi intuição de João XXIII. Eu tive a felicidade de ter formadores maravilhosos. Meu primeiro formador que eu tenho uma reverência por ele é Frei Basílio Prim, foi mestre de noviciado. Com ele aprendi os caminhos do ser franciscano. E tenho um respeito, uma estima, uma gratidão e por que não uma reverência a ele, que mais tarde foi nosso Provincial. E depois os professores. Eu fui aluno de Frei Boaventura Kloppenburg, Frei Gamaliel Devigili, Frei Alberto Beckhäuser, os nossos grandes formadores, Neylor Tonin, Almir Guimarães, Arcangelo Buzzi, Gentil Titon, homens que marcaram a nossa Província e ainda hoje pelo seu grande conhecimento. O Frei Fábio Panini, professor de Direito Canônico. Eu tive homens maravilhosos que souberam viver o tempo das mudanças. Eles se adaptaram às mudanças, numa atitude de aceitação do novo. E tive a felicidade de ser aluno de Leonardo Boff, logo que ele chegou da Europa. Ele estava começando como professor, com toda a garra, todo desejo de ser mestre dos alunos de quem ele acompanhou. Então, fiz dois anos de Teologia de Boaventura Kloppenburg e três anos de Teologia do Leonardo, porque além de ser mestres e professores, foram meus grandes amigos, que eu sempre reverenciei. Então, eu digo que os nossos mestres da época tiveram capacidade de se adaptarem às mudanças sem saudosismos e sem imediatismos, mas contemporizando as realidades, uma teologia que está no seu ocaso e uma teologia que está na sua aurora na América Latina e no mundo inteiro. Eu fico feliz porque vivi uma época das mudanças, sem ter perigo das cristalizações. Dizer: Isso aqui que é o certo, isso que é o absurdo! Não, no meu aprendizado eu vivi o tempo em que a teologia estava em mudanças e a gente tem que estar aberto à ação do Espírito. Foi essa teologia que eu estudei.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a Teologia da Libertação e o papel dela naquela época? Hoje, ela tem lugar nesse mundo polarizado?
Frei Luiz – Eu digo o seguinte. A teologia da Igreja é uma grande árvore. Essa árvore tem muitos galhos e cada galho representa uma maneira de ser teológica. Vou dar alguns exemplos. Quando se fala a teologia feminina, que significa isso? A presença da mulher na história da salvação e a importância da mulher no projeto de salvação de Deus. Quando se fala a teologia da criação, então vem toda essa dimensão do meio ambiente que nós estamos aprendendo muito com o Papa Francisco, quando ele assume a Amazônia, quando ele assume a luta pela vida da natureza, a ecologia integral. Quando se fala da teologia da libertação é outro galho da grande teologia. É aquela que mostra o Jesus salvador e que veio para todos, especialmente os oprimidos, dando voz aos pequenos desse mundo. Então, é um galho importantíssimo da grande teologia da Igreja, que é tão necessária, que é o coração do Evangelho, um Jesus que se dá inteiramente aos pobres e dá a sua vida pela libertação dos pobres. Eu fico muito feliz de ser fruto dessa teologia. E se fui para o sertão durante 50 anos, dei a minha vida pelo povo do sertão do Nordeste brasileiro, é porque bebi na fonte da teologia da libertação, que o Evangelho deve ser levado a todos, especialmente para os pequenos deste mundo.
Site Franciscanos – Que razões o levaram a se transferir para o vale do São Francisco quando estava na Pastoral Operária de São Paulo, com D. Paulo Evaristo Arns?
Frei Luiz – Dom Paulo foi nosso grande amigo. Posso dizer que ele foi o meu pai. E ele me tinha como seu filho. Ele dizia assim para mim: “Frei luiz, você é meu filho. Eu ordenei muitos padres, ordenei alguns bispos. Você eu ordenei padre e ordenei bispo, então você é meu filho”. Eu tinha assim essa alegria por ter essa consideração de D. Paulo Evaristo. E toda vez que eu chegava perto dele, ele me dava seu braço para que eu o acompanhasse para onde ele fosse. Então tive esse grande pai, esse grande amigo, que na época que estávamos na Pastoral Operária, na Vila Guilherme (SP), com Frei Luis Sartori, Frei José Alamiro, Frei Antônio Sperandio nós éramos a equipe da Pastoral. E era uma época muito difícil porque estávamos na ditadura militar. Nós éramos muito vigiados. As pastorais sociais eram muito vigiadas. Então, tínhamos muito cuidado. Em nossas reuniões, a maioria era de nordestinos. E nós perguntávamos: “O que vieram fazer em São Paulo nesta situação tão difícil desta cidade?” Respondiam: “Nós viemos para melhorar a nossa vida”. Eu cá, com meus botões, perguntava: “Melhorar a vida assim? Isso aqui é melhora de vida? Então, como é a vida deles lá?” O Espírito franciscano dizia: seu lugar é lá, porque lá estão os pobres, bem pobres. Então, o que me levou para o Nordeste, o sertão da Bahia, é meu amor a São Francisco e meu amor a Jesus dos pobres.
Site Franciscanos – Hoje, como o sr. avalia as duas greves de fome, nos anos de 2005 e 2007, na trajetória de luta contra a transposição do Rio São Francisco?
Frei Luiz – Quando nós tomamos conhecimento da transposição, minha reação foi de muita alegria porque a transposição estava baseada numa propaganda enganosa, mentirosa, dizendo que era para levar água aos pobres. Quando vi essa notícia, disse: Maravilha! Fiquei felicíssimo por levar água aos pobres. E quando estudei e fui conhecer o projeto vi que não era nada disso, que era o contrário. Era tirar a água dos pobres para dar aos ricos, aos grandes projetos agroindustriais. É usar o rio que é vida para o povo. Economicamente é transformar o rio num objeto de mercado. Daí nós tentamos de todas as maneiras estabelecer um diálogo com o Governo Federal. Não houve acolhimento. Eles não quiseram conversar sobre o projeto de transposição. Depois de muita luta, de muito esforço, eu tive a intuição: “quando a razão se extingue, loucura é o caminho”. Foi quando eu decidi, inspirado pelo Espírito Santo, meu Deus, porque se não fosse o Espírito Santo de meu Deus eu não teria forças de aguentar o jejum. O primeiro foi de 2005, que durou 11 dias, e o segundo de 2007, que durou 24 dias. Então, isso foi um grito em defesa da vida, um grito para chamar a atenção do Brasil e do mundo para a importância da vida do rio para o povo e que nós não podíamos transformar o rio num objeto econômico. Foi isso que me levou a esses dois jejuns.
Site Franciscanos – Como é suportar uma greve de fome?
Frei Luiz – Na fé, porque é terrível. Você pode imaginar o que seja o primeiro de onze dias, só bebendo água e o segundo de 24 dias foi muito pesado. A gente via a morte chegando. A gente sentia o corpo enfraquecendo. Eu fazia questão de ter o único alimento: a Eucaristia. E nos primeiros dias ao lado do altar, depois mais afastado, depois sentado, depois de bruço, quase deitado. A gente via o fim chegando. Foi realmente um momento difícil que se não fosse a graça de Deus, não teríamos aguentado.
Site Franciscanos – Para quem também acompanhava seu jejum era um momento tenso.
Frei Luiz – Com certeza, eu recebi muito apoio da Igreja, meus confrades bispos, sempre muito solidários. Minha família estava comigo. E o que deixou mais feliz: todos os padres da minha Diocese estavam comigo. Muita solidariedade.
Site Franciscanos – Atualmente, como os ribeirinhos e a população às margens do São Francisco avaliam a obra de transposição do Rio? Ainda há resistência?
Frei Luiz – O projeto não foi levado a efeito. Alguma coisinha foi feita, muito malfeita, tanto é que se destrói naturalmente. E aquela água que deveria ser levada, infelizmente está se perdendo nos grandes canais que foram construídos. Imagine levar água por um canal de mais de mil km, que qualidade de água vai chegar lá adiante? E também os canais estão se arrebentando porque foram mal construídos. Muito dinheiro foi jogado fora. Então, o povo nem fala mais nisso porque, infelizmente, não teve significado nenhum para o povo do Nordeste.
Site Franciscanos – Como o sr. recebeu a notícia do “The Economist” que, ao comentar a sua greve de fome, disse que o Rio São Francisco havia encontrado o seu Gandhi?
Frei Luiz – O “The Economist” é um grande jornal. Tudo bem, a gente recebeu elogios e críticas, mas eu digo para você que eu estava muito além de elogios e críticas, eu estava muito concentrado na minha missão libertadora. E nem estava aí para as críticas e elogios.
Site Franciscanos – Tão marcante como a greve de fome foi a caminhada que realizou durante um ano ao longo do Rio São Francisco. Que impressões o sr. colheu desta experiência e como o foi recebido pelas comunidades ribeirinhas?
Frei Luiz – Quando fiz a caminhada, era padre. Ela foi um meio que encontramos para dialogar com o povo ‘saofranciscano’ e falar da importância do rio. Então, nós começamos a caminhada no dia 4 de outubro de 1992 e terminamos no dia 4 de outubro de 193, em 365 dias caminhando na beira do rio São Francisco, da sua nascente até a foz. Dormindo nas casas do povo, comendo aquilo que nos ofereciam. E passando por todas as comunidades da beira do rio, no estado de Minas, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Caminhamos 2.700 km e falando sobre a importância do rio para a vida do povo e a necessidade do povo ‘saofranciscano’ de lutar pela vida do seu rio, porque é a água que o povo bebe, é o peixe do rio que come, é a água do rio que molha as terras de onde colhe o que comer. O rio é o pai e a mãe do povo. Então, se nós quisermos lutar pela vida do povo do sertão, é lutar pela vida do Rio São Francisco, porque é ele que garante a vida do povo. Se o Rio estiver sadio, o povo vai estar sadio, se o rio estiver doente, o povo adoece, se o rio morrer, o povo morre. Então nós assumimos esta luta de conscientizar a população e hoje a gente vê em todo o Vale do São Francisco como são conscientes do valor desse rio.
Nós éramos em quatro: eu, como frade franciscano, Adriano Martins, a Irmã Conceição Menezes, uma religiosa franciscana que foi a cronista e colheu 10 volumes em 365 dias, e o Orlando Araújo, que era um lavrador e sindicalista. Conhecia bastante o rio. Entraram outras pessoas durante alguns trechos ou períodos, mas saíram. Os quatro foram até o fim. E como fruto desse trabalho foi editado o livro “O Rio São Francisco – Uma Caminhada entre Vida e Morte”, que foi publicado pela Editora Vozes e que conta resumidamente esta experiência. Tudo gravado e escrito. Nós entrávamos em todas as casas que abriam portas, escolas, igrejas, fossem elas católicas, presbiterianas, espíritas, nas câmaras municipais e nas emissoras de rádio. Enfim, conversávamos com todos sobre a importância e o valor do rio para a vida do povo. Esse foi o objetivo da peregrinação.
Site Franciscanos – Por que a Articulação Popular São Francisco Vivo perdeu força nos últimos anos?
Frei Luiz – Ela já foi mais forte e já prestou mais serviços. Realmente depois que tivemos um tempo, em nível governamental, muito à deriva, isso enfraqueceu todos os movimentos sociais e que agora, devagarinho, alguns estão se ressuscitando. Quem sabe a gente possa, também devagarinho, fazer com que o Rio São Francisco volte a ter a pujança e a vivacidade que já teve no passado.
Site Franciscanos – O sr. dizia: “Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo”. Como o sr. avalia as crises climáticas?
Frei Luiz – Segundo os especialistas, já não tem mais retorno. Nós gostaríamos tanto de manter a fé e a esperança na possibilidade de retorno. É nesse sentido que eu agradeço a Deus pelo nosso Papa Francisco. Ele é um homem do nosso tempo. Ele abraçou essa questão ambiental de coração, porque ele sabe muito bem que a vida do planeta é condição para a vida do povo. Então se nós quisermos a vida do povo, nós temos que lutar pela vida do meio ambiente que é a condição de vida do povo. Agradeço a Deus por termos como líder de nossa Igreja um homem da grandeza de um Papa Francisco, que faz do meio ambiente uma de suas prioridades. Nós estamos vendo catástrofes terríveis, mas não é apenas no meio ambiente, não, mas também provocadas pelo ser humano. Olha a guerra na Palestina, olha a guerra na Ucrânia. Somos nós, homens, que não estamos, infelizmente, dando o devido valor à vida, à natureza, e provocando essas crises terríveis. E a natureza recebe os reflexos dos maus tratos do ser humano. Eu confesso que tenho rezado muito pelas criancinhas porque eu fico me perguntando: Meu Deus, o que será do mundo quando essas criancinhas, tão lindas, inocentes, forem adultas? Que mundo estamos deixando para eles? Nós recebemos um mundo tão maravilhoso de nossos pais, de nossos antepassados, que mundo estamos deixando para os inocentes de hoje, quando eles se tornarem adultos? É uma questão que não podemos fechar os olhos e muito menos o coração.
Site Franciscanos – Antes do Papa Francisco, o sr. gritava pela ecologia integral e alertava pela degradação da natureza e do Planeta. A Laudato Si’ veio confirmar isso?
Frei Luiz – Na minha Visita ad limina ao Papa Bento XVI, eu pedi a ele que escrevesse uma Encíclica sobre a água, porque o João Paulo II escreveu sobre a terra e nos ajudou muito nas nossas lutas fundiárias. Eu pedi ao Papa Bento que se ele escrevesse uma encíclica sobre a água, daria muita autoridade a todos aqueles que lutam em favor da vida no mundo. Ele falou assim: Eu não vou conseguir escrever, mas com certeza o meu sucessor vai escrever. Parecia que ele já estava preconizando. E não deu outra. Francisco chegou e nos presenteou com a Laudato Si’, que é um grito em defesa do meio ambiente.
Site Franciscanos – Como o sr. avalia o Pontificado do Papa Francisco?
Frei Luiz – Meu Deus, eu sempre digo. Nós somos felizes. Os últimos pastores, todos homens santos. Eu agradeço muito a Deus de ter sido discípulo de um João XXIII, de um Paulo VI, de um João Paulo II, Bento XVI e agora do Papa Francisco. Eu agradeço a Deus de ter como luzes faróis que conduzem a nossa Igreja. Homens santos e lúcidos, e que estão altamente preparados para conduzir a humanidade em épocas tão difíceis como esta que estamos vivendo. Que Deus seja louvado pelo Papa Francisco!
Site Franciscanos – No cenário mundial atual, não há outro líder.
Frei Luiz – Ele é o grande líder no mundo, que sabe o que quer, o que está dizendo. E tem condições de mostrar o caminho a seguir.
Site Franciscanos – A Ordem Franciscana está sabendo usar a divulgação do carisma que faz o Papa Francisco, especialmente com a Laudato Si’ e a Fratelli tutti?
Frei Luiz – Eu acredito que nós precisaríamos melhorar. Nós, como franciscanos, tendo uma orientação de Igreja que vem de encontro ao carisma franciscano. Eu sinto que nós, como franciscanos, ainda não percebemos, não tomamos consciência de que esse é um tempo nosso. E que deveríamos aproveitar melhor o carisma da Igreja que hoje é o mesmo carisma de Francisco. Tanto é que o Papa se chama Francisco. E ele adotou a espiritualidade franciscana embora sendo jesuíta. Então, nós, sendo franciscanos, deveríamos ser mais fiéis ao Papa Francisco.
Site Franciscanos – Como o sr. avalia a crise vocacional na Igreja, especialmente nas Ordens religiosas, já que muitas dioceses têm vocações?
Frei Luiz – Como nós da Diocese da Barra. Eu deixei os padres da Diocese todos ordenados, cada qual com o seu padre preparado pela Diocese. No Seminário, todos os seminaristas são da Diocese. Eu acredito que estamos bem.
Eu acredito que a crise vocacional faz parte da crise que estamos vivendo de um modo geral. Agora, o que significa isso? Significa, ligando com a pergunta anterior, que deveríamos viver com mais garra o nosso carisma franciscano. Realmente viver para valer a mensagem de São Francisco, o carisma franciscano, a vocação franciscana, porque eu acredito que quando mais a gente for fiel à nossa herança, mais vamos atrair vocações. Quem sabe a falta de vocações seja um sinal de que nós não estamos sinalizando como deveríamos o carisma franciscano. A questão vocacional nos diz respeito: Será que estou vivendo a minha vocação cristã franciscana de tal maneira que eu seja um instrumento para atrair outros para viver a mesma vida? São Francisco atraiu tantos. Será que nós, como franciscanos, estamos também vivendo de tal maneira que atraímos outros? É uma pergunta e um questionamento para nós.
Site Franciscanos – Como o sr. vê a revolução tecnológica, especialmente a Inteligência Artificial, que foi tema da mensagem de 1º de Ano do Papa Francisco?
Frei Luiz – É uma espada de dois gumes, como o Papa Francisco diz. Traz muita coisa maravilhosa, mas também traz consigo muito perigo. O que tem que haver é o bom senso do ser humano de saber utilizar com inteligência as conquistas tecnológicas e ao mesmo tempo estar cuidadoso em relação aos perigos que ela traz consigo. Então, isso exige de nós essa atenção, que é um momento de muita riqueza, mas também de muito perigo. Então, cabe a nós um espírito evangélico franciscano em nosso caso para saber usar o que existe de moderno sem nos deixar arrastar pelos perigos que traz consigo.
Site Franciscanos – Que mensagem franciscana o sr. daria para os jovens de hoje?
Frei Luiz – Eu diria assim: Meus queridos jovens, conheçam Francisco, porque conhecendo Francisco vocês vão conhecer Jesus e conhecendo Jesus, a vida de vocês vai ganhar sentido. Agora, por outro lado, meus queridos confrades franciscanos, os nossos jovens só terão oportunidade de conhecer melhor Francisco e conhecer melhor Jesus se nós, franciscanos, formos verdadeiramente discípulos de São Francisco e seguidores do Jesus Libertador. Amém
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